Festa. ANÍBAL e JOANA são os anfitriões. Todos estão muito bem vestidos. Toca a campainha, JOANA vai atender. Um casal de convidados chega à festa, VINÍCIUS e QUITÉRIA. Já adentram o recinto falando efusivamente com o casal anfitrião, demonstrando uma forte intimidade entre os quatro.
ANÍBAL
Não acredito!
JOANA
Nem eu acreditei, pensei que vocês não viessem mais.
VINÍCIUS
Nada, foi só um atrasinho. De quanto, Aníbal? Uma garrafa?
QUITÉRIA
Ih... Já vi que amanhã é só ressaca...
ANÍBAL
O Vinícius é forte no whisky. Nós aqui estamos na primeira garrafa ainda, mas agora que você chegou já vi que vou ter que botar mais gelo pra fazer. Cadê teu copo?
VINÍCIUS
Garçom!
ANÍBAL
Desce dois!
JOANA
Vem aqui, Quitéria! Vamos tricotar.
QUITÉRIA
Joana, você não sabe quem casou...
Em momento algum a câmera mostra alguém falando diretamente o texto. Na edição, misturar os diálogos, a trilha sonora e as imagens de forma não-linear, caótica, inconstante, altamente livre. No fundo, murmúrios dos outros convidados. Enquanto os diálogos são ditos, a câmera passeia pelos smokings, pelos vestidos longos e pelos copos de whisky e de hi-fi. Só não haverá a beleza das cores do suco de laranja com vodka porque o filme é todo em preto-e-branco.
ANÍBAL
É, realmente essa questão do agrobu$$ine$$ é complicada. Eu sempre vivi da pecuária, herdei tudo de papai. Mas sofro um bocado com meu gado. A coisa mais chata do mundo é essa gente aí defendendo animal. É pior que o povo dos direitos humanos.
JOANA
Tenho tanta pena dos bichinhos. Vivem pra morrer.
VINÍCIUS
E morrem pra viver.
JOANA
Filosófico.
QUITÉRIA
Outro dia eu estava falando com zelador...
JOANA
Que coincidência, menina! Eu também.
ANÍBAL
Gado a gente controla, isso que é bom. Vem todo mundo reclamar, mas na hora da picanha, do churrasquinho ali, todo mundo quer aquela carne salgadinha sangrando.
VINÍCIUS
Eu também.
QUITÉRIA
Adoro coração.
ANÍBAL
Cada um é uma galinha.
VINÍCIUS
As pessoas dizem isso, mas é como se matasse cada uma só pra tirar o coração. A gente tira tudo, tanto faz. Coxa, asa, peito, pele, sangue... É que o coração é símbolo de vida. O peso da frase é o peso da morte, são nossos próprios corações espetados ali. E coração de galinha é gorduroso, causa infarto.
ANÍBAL
Papo de churrasco...
JOANA
Ai, já encheu.
VINÍCIUS
Churrasco é bom, sucesso garantido. O povo adora.
JOANA
O povo quer é festa! Mesmo se não tiver motivo, o povo vai lá e inventa um: Futebol, Fórmula 1, Programa de Auditório...
ANÍBAL
Se junta gente pra qualquer protesto, já tem alguém ali com um isopor, vendendo cerveja. Não demora muito, vem outro e liga o som do carro alto, com o porta-mala aberto. Aí já carnavalizou tudo, não tem mais jeito. O protesto já foi esquecido e virou bebedeira, fanfarronice, a tal da “pegação”. Enfim, já virou festa. Já virou Brasil.
QUITÉRIA
Lembram da cara pintada de guache? Sempre a mesma cara lavada de sempre. Cara cheia de cachaça, todo mundo bêbado. Cara-de-pau, cara barata, cara de cavalo, cara de areia mijada. Já disse o sábio Nelson: “tem gente que não sabe apreciar um Chica Bom e ainda tem a pretensão de querer apreciar a vida”.
JOANA
É o cio do povo. O povo que baba, o povo que cospe, o povo manso, tão manso quanto o gado que devora semanalmente com sal grosso. Povo estancado, que tranca as próprias ruas. Povo sangue coagulado, sem pernas, sambando nas muletas um Carnaval hipócrita cotidiano. O povo é aleijão.
ANÍBAL
Povo? Que povo? Não tem povo nenhum! Ninguém tá nem aí pra nada. Aqui é a lei da selva. Se o cara puder te prejudicar ele não hesita, te deixa na lama. Ordem e progresso? Nunca entendi isso, sinceramente. Há uma frase escrita na bandeira de um país analfabeto. Quem vai ler? Progresso de que ordem? Que ordem? Progresso pra onde? Caos e regresso, isso sim! Democracia? Voto? Edição de vídeo elege até presidente aqui nesse buraco. Eu sempre duvido de todos os resultados vomitados. O povo não vota. O povo é pão com ovo.
QUITÉRIA
Bebe cerveja vendo o jogo de futebol depois do telejornal e da novela, depois vai dormir, achando que felicidade é o pagode no sábado e o enterro dos ossos no domingo. O povo é barbárie.
VINÍCIUS
Não tem mais jeito, é baixar a porta de ferro e decretar moratória. Refazer a constituição da mandioca. Povo é rés, coisa. Rés pública. Povo é coisa pública. O povo é margarina.
JOANA
E ainda vêm sempre alguém pra falar de identidade nacional...
VINÍCIUS
Identidade nacional? Nação? Que nação? O gringo vem pra cá e faz o que quer. Bebe, fuma, cheira, fode... Vem pra cá e acha que é festa, que pode tudo, que é só bagunça. O país é um imenso puteiro pra eles. E nós ficamos de voyer, coniventes com a situação. Aqui é o “Motel dos Brochas”. Eles tomam viagra e nós ficamos vendo a foda de perto, impotentes, calados. Totalmente coniventes. Imersos em nossa brochura ridícula. Nação o que? Nação Carnaval? Nação anestesia? A culpa agora é minha? É minha?
ANÍBAL
“Martelo é fácil de usar: se acharem três pregos vão é me crucificar”. Já disse o poeta, Cristo Titã. “Cristo não é fumaça, Cristo não é biscoito, Cristo chá não é sopa, Cristo deu luz aos cegos. Cristo não tire a roupa!”.
JOANA
Ih, tá bêbado já...
QUITÉRIA
Taí, gostei: “Cristo não tira a roupa”.
VINÍCIUS
Isto é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
JOANA
Cortina de fumaça.
VINÍCIUS
Humor é dissipá-la. “Amor - humor”.
QUITÉRIA
Cuidado que ele é canibal.
ANÍBAL
“Fomos para Amsterdã, vôo das sete da manhã. De ônibus ou trem, ninguém passa sem... Cristo não é fumaça!”.
VINÍCIUS
Segundo o cinema: “um gênio ou uma besta?”. Segundo o teatro: “um artista deve ser considerado gênio por uns e imbecil por outros, mas se for considerado imbecil por todos, melhor”. Segundo a música: “martelo é fácil de usar: se acharem três pregos, vão é me crucificar”.
QUITÉRIA
“Cristo não tira a roupa”. Será que ele foi crucificado nu? Dizem que os delinqüentes eram crucificados nus.
JOANA
Os delinqüentes... Corpos se amontoando nas valas comuns. Cristãos indigentes. No bolso o santinho, sem carteira de identidade. Cristãos ladrões, cristãos assassinos, cristãos estupradores, cristãos sem caráter. Traficantes com 16 anos de idade fazem o sinal da cruz e beijam um imenso crucifixo de ouro pendurado no pescoço antes de trocar tiros com a polícia. No bolso um santinho, mas ele não é portador de uma carteira de identidade. Porta drogas e cédulas. Moeda não!
QUITÉRIA
O pensamento é medieval. São feras soltas nas ruas, devorando-se. Basta um pé fora das grades para que eles queiram devorar nossa carne, beber nosso sangue, dirigir nosso carro e foder nosso cadáver. A barbárie faz a morte rondar nossos dias com uma proximidade absurda.
JOANA
As cidades estão entregues. Excrementos pelas ruas, psicopatas pelas calçadas. Eles vão acabar se matando uns aos outros, e eu quero estar bem longe quando isso acontecer.
VINÍCIUS
Eu não tenho mais pena. Nem tenho mais tinta. Penso que a letargia mental do povo é inaceitável. Temos que parar de passar a mão na cabeça de coitadinhos inventados, pois isso fomenta o pensamento pequeno, o pensamento “Zé Povinho”. “Absurdos me fariam feliz. Seco, reto, isento, amoral”.
ANÍBAL
Todo brasileiro se acha artista. Mas estava certo o maestro: a única saída para o artista no Brasil é o aeroporto. E vagabundo é tão estúpido que não entendeu o tom da ironia e batizou com o nome dele um aeroporto internacional.
QUITÉRIA
Artista no Brasil é considerado vagabundo.
VINÍCIUS
A não ser que esteja com a carinha na televisão.
JOANA
O povo quer ver na televisão tudo o que não o representa pra se alienar da realidade miserável em que vive. Já repararam que na novela todo mundo é rico?
ANÍBAL
O bom de ser fazendeiro é que gado é fácil de domar. É só botar aquela massa de carne pra andar de um lado pro outro.
QUITÉRIA
Pior quando vem aquele pessoal defendendo bandido. Direitos humanos, vê se pode... É o cúmulo isso, achar que alguém que te rouba tá com a razão só porque vive na miséria. O próximo papo qual é? Pregar o assassinato de quem não é pobre?
JOANA
Mas não é só a classe miserável. Os ricos também matam, espancam, estupram. Os filhos da excelência capital, sem rumo, vagam pela inadimplência nacional misturando álcool, drogas, anabolizantes e violência gratuita. Seus ídolos são os bandidos. Eles falam que nem os bandidos. E ainda ficam soltos, porque têm papai e mamãe influente.
Improvisos, descontração etc. Afinal, é uma festa.
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